UMA CRÓNICA SOBRE COVID/19

Uma crónica sobre COVID/19
em 2020-09-23 Ano: 2020
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Autor(es)

Paulo Cordeiro Salgado

Administrador Hospitalar - ENSP/UNL

Pós-graduado em Administração Pública - UMinho

Pós-graduado em Direito dos Contratos - UCP

Mestre em Gestão-Especialização em Gestão e Administração de Unidades de Saúde-UCP



Local – aldeia do concelho de Torre de Moncorvo, Nordeste Transmontano (poderia ser noutra aldeia qualquer deste nosso País) 

Data / hora – 25 de Abril de 2020, pelas 20.00h 

Personagens – Ester e Joaquim; ela, 72 anos, doméstica, cara enrugada, suave, olhos castanhos brilhantes, cabelo ainda negro e farto, trabalhadora nas lides da casa, queijeira (fabricadora de queijo e de requeijões com as suas mãos calejadas esguias e bem temperadas, que as mãos têm de estar a uma temperatura própria para aquela função – não é qualquer uma que faz bom queijo…); ele, 74 anos, pastor desde os doze anos, ou mesmo antes, olhos azuis, sempre vivos e atentos, barba rara, sempre foi assim, com pouca barba. Conhecem-se desde 10 e 12 anos respetivamente. Pelos quinze, eles sentiram o calor do amor… 

Ação – Joaquim acabou de ordenhar as ovelhas, são dezassete, já teve vinte e duas, os herbicidas, que vieram substituir a monda manual mataram-lhe cinco, e mais lá para trás, quando era novo, chegou a guardar cento e cinquenta, uma fartura, havia muitos pastos, tudo andava cultivado, o gado podia pastar em qualquer sítio do termo da aldeia, desde que respeitasse os prédios alheios, muito respeitinho, homem de palavra, pouca palavra, mas acertada. 

Trouxe do curral a vasilha de lata, limpa, limpinha, de modo que não haja detritos e entregou-a à sua mulher. Foi tomar banho. Bom, lavar o tronco e pôr os pés em água quentinha para os aquietar de tanta canseira por montes, verdade seja dita que agora o pastoreio acontece desde manhã até ao fim do dia, antigamente andava-se até altas horas e “pegava-se” bem cedo. Sentou-se no sofá coberto por uma manta fina para não se sujar, coisas da velhota, pensou, e preparou-se para comer o arroz de couves e um bocado de frango assado, 

- tudo quentinho, como eu gosto, vinho agora só em dia de festas, nunca fui bebedor, e não é agora que vou começar, pensou. 

Ester preparou o leite com o coalho e colocou a jeito a tábua de fazer os queijos, preparou os aros onde foi colocando leite com o coalho, delicadamente, sempre delicadamente, ó homem come, eu já comi, e vamos ouvir as notícias. O seu olhar era entre o fabrico manual dos queijos e a televisão, a hora do telejornal. 

- Há tantos infetados na Região do Norte, tantos mortos, o COVID/19 é uma ameaça – ia debitando a jornalista. 

- Ó mulher não percebo nada disto! Que raio de bicho careto é este? 

- Joaquim, este bicho mata que se farta. Tu só ouves estas coisas à noite e não percebes nada. É um bicho que não se vê, que entra pela boca e pelo nariz e que se vai meter nos pulmões. É o que ouço na televisão e a ti Engrácia também sabe muito destas coisas, que veio há dias de Lisboa.  

- Então andei eu pela Guiné, combatendo contra o inimigo, forte era, acertava ou não, ou ele acertava em nós, não há-de ser mais perigoso este do que aquele lá naquelas matas. 

- Vê-se que andas entretido com as ovelhas, valem mais do que tudo no mundo para ti. Este bicho não se vê, mas anda aí pelos ares em cima das pessoas. 

- Em cima das pessoas, como? 

- Valha-te Deus e Nossa Senhora! Ele anda no ar mas em cima das pessoas, ali na televisão explicam tudo direitinho, são as pessoas que andam de um lado para o outro e não estão preocupadas, homem, cumprimentam, abraçam-se, beijam-se. 

- Ó, mulher, eu nunca gostei de andar aos beijos e abraços, isso só a ti, que tu bem o sabes, mas agora têm estas modas de beijocar e abraçar, mas eu sempre te disse que não era boa maneira aquilo que dizem ser boas maneiras, isso de andar aos abraços, não pega, e então o bicho careto comigo não entra. 

- Isso agora é que tu não sabes, temos de andar com cuidado aqui na aldeia não venha alguém de fora com o bicho e nos pegue, tu não vês ali os deputados e o presidente, ali em discussão com máscara, todos com máscara? Vamos ter de comprar máscaras e botá-las na cara, deixa-me ver aqui se os queijos estão a ficar bem, amanhã, de manhã já digo à dona Ângela que mas traga da Vila. 

- Bem podes tu usá-la aqui na aldeia, eu não preciso, as ovelhas andam bem e elas não andam com o bicho, esse tal vírus, em cima da lã, eu só venho à noite para casa, não preciso, já viste o que era eu atravessar o fundo do lugar com essa coisa nas ventas, com a taleiga ao ombro e o cajado na mão! Iam rir-se do Joaquim pastor… 


17 de setembro de 2020