OS NÓS POR DESATAR E A AMEAÇA CIVILIZACIONAL
Autor(es)
Pedro Marques
Diretor de External Affairs da MSD Portugal
O surto de coronavírus – é já um lugar-comum referi-lo –
veio como um tsunami invisível que ameaça alterar a forma como a sociedade, em
geral, tem vindo a estabelecer a sua vivência e convivência.
Não sendo especialista em saúde pública direi, contudo, que
ficámos todos mais conhecedores dos desafios que nos foram colocados, no
momento presente, e para o futuro. Ficámos ansiosos, apreensivos, receosos,
revoltados, conformados, expectantes; ficámos tudo isso, por vezes em separado,
noutras no turbilhão da vida que vimos discorrer numa vórtice apocalíptico como
nunca tínhamos assistido durante a nossa existência. A história tem exemplos de
pandemias com maior magnitude até, porventura. Mas no mundo em que vivemos,
mais pequeno porque encolheu com a globalização, estamos a assistir em direto a
tudo o que está a acontecer, em todo o lado; até mesmo ao que não está a
acontecer. Vemos as ações e as inações dos Estados dos líderes políticos, e das
comunidades científicas, e os media, e das populações, e dos comentadores, e
dos influencers das redes sociais. E a nossa opinião, sim, a nossa opinião
também conta e vai sendo cada vez mais informada.
E lutamos para nos protegermos e protegermos os nossos.
E vemos aqueles que, fartos de o fazerem e sem resiliência
para mais, desconfinam apressadamente ou de modo menos cauteloso. Ficamos
preocupados connosco e com os nossos. E, em certa medida, até revoltados com o
retrocesso nas pequenas vitórias, não consolidadas, que obtivemos até então.
De repente muita coisa mudou na vida de todas as pessoas, em
todo o mundo. O efeito final deste surto é ainda apenas e só um exercício de
adivinhação, alguma especulação e muita emoção ou vontade de que as coisas
sejam como nós as idealizamos.
Todos queremos a vacina ou as vacinas. Queremos o melhor
tratamento. Queremos que a ciência avance depressa, que os ensaios clínicos
demonstrem a prova de eficácia, segurança e qualidade.
Estou convencido de que vai ser preciso muito mais do que
descobrir a vacina e ou a cura. Vai ser necessário estarmos atentos à próxima
vaga. E vai ser preciso encontrar mecanismos que possam evitar ou mitigar o
impacto nas comunidades e sociedades com menos nível de rendimento,
empregabilidade e estrutura social.
Este fenómeno tende a criar um fosso ainda maior entre os
que têm mais e os que estão abaixo do limiar de pobreza. O coronavírus pode
criar novos pobres, pode empurrar famílias, regiões e países para uma situação
muito pior do que a que existia antes – e esta já não era famosa.
O grande debate vai ser como solucionar as novas situações
de injustiça social e pobreza emergente, sem que a receita do passado seja a
solução para o presente e para o futuro.
Na altura em que escrevo estas linhas Portugal pode estar a
iniciar uma segunda vaga. Não sabemos, não existe clareza a este nível. De
resto há muito mais especulação, opinião, até “achismo” do que evidência
sustentada em factos que possa trazer nitidez e claridade à dimensão do que
estamos a viver. No mundo inteiro, diria.
Na empresa em que trabalho adotámos uma postura de
responsabilidade e compromisso. Responsabilidade para com os trabalhadores, a
sua saúde e a das suas famílias.
Reinventámos a forma de trabalhar, ajustámos processos e
adotámos novas ferramentas de trabalho.
Continuámos ativos na nossa missão de melhorar e salvar
vidas, apesar de um cenário adverso, através da disponibilização dos nossos
medicamentos e vacinas.
Por fim, marcámos posição no combate à COVID-19 com anúncio
de colaborações para o desenvolvimento de vacinas e antivirais para tratamento
dos doentes.
É um orgulho poder fazer parte de uma organização que
lidera, que está na vanguarda da ciência, que assume e reforça o seu
compromisso.
Como cidadão não posso, contudo, confundir a parte com o
todo. E sei que muito temos todos, enquanto sociedade, de fazer, unindo
esforços e cerrando fileiras, para que um dia, não sabemos ainda quando, se é
que isso voltará a ser possível, possamos andar na rua como antes o fazíamos,
de forma segura, inclusiva, coesa, ética e com alegria.
Sim alegria. E esperança. E saúde. E bem-estar. Coisas
simples, direitos que pensávamos ser inalienáveis e que o coronavírus ainda
ameaça querer manter em confinamento.
É uma luta sem tréguas. Acredito que vamos vencer. Só não
sei ainda a que preço.
Mas, juntos, seremos capazes de desatar os nós que este
vírus soube dar às nossas vidas e ao mundo que, ainda há 6 meses atrás, todos
nós conhecíamos e que, sendo imperfeito, era melhor do que aquele em que
estamos forçados a (sobre)viver.
Lisboa, 29 de junho de 2020