OS NÓS POR DESATAR E A AMEAÇA CIVILIZACIONAL

OS NÓS POR DESATAR E A AMEAÇA CIVILIZACIONAL
em 2020-07-03 Ano: 2020
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Autor(es)

Pedro Marques 

Diretor de External Affairs da MSD Portugal


O surto de coronavírus – é já um lugar-comum referi-lo – veio como um tsunami invisível que ameaça alterar a forma como a sociedade, em geral, tem vindo a estabelecer a sua vivência e convivência.

Não sendo especialista em saúde pública direi, contudo, que ficámos todos mais conhecedores dos desafios que nos foram colocados, no momento presente, e para o futuro. Ficámos ansiosos, apreensivos, receosos, revoltados, conformados, expectantes; ficámos tudo isso, por vezes em separado, noutras no turbilhão da vida que vimos discorrer numa vórtice apocalíptico como nunca tínhamos assistido durante a nossa existência. A história tem exemplos de pandemias com maior magnitude até, porventura. Mas no mundo em que vivemos, mais pequeno porque encolheu com a globalização, estamos a assistir em direto a tudo o que está a acontecer, em todo o lado; até mesmo ao que não está a acontecer. Vemos as ações e as inações dos Estados dos líderes políticos, e das comunidades científicas, e os media, e das populações, e dos comentadores, e dos influencers das redes sociais. E a nossa opinião, sim, a nossa opinião também conta e vai sendo cada vez mais informada.

E lutamos para nos protegermos e protegermos os nossos.

E vemos aqueles que, fartos de o fazerem e sem resiliência para mais, desconfinam apressadamente ou de modo menos cauteloso. Ficamos preocupados connosco e com os nossos. E, em certa medida, até revoltados com o retrocesso nas pequenas vitórias, não consolidadas, que obtivemos até então.

De repente muita coisa mudou na vida de todas as pessoas, em todo o mundo. O efeito final deste surto é ainda apenas e só um exercício de adivinhação, alguma especulação e muita emoção ou vontade de que as coisas sejam como nós as idealizamos.

Todos queremos a vacina ou as vacinas. Queremos o melhor tratamento. Queremos que a ciência avance depressa, que os ensaios clínicos demonstrem a prova de eficácia, segurança e qualidade.

Estou convencido de que vai ser preciso muito mais do que descobrir a vacina e ou a cura. Vai ser necessário estarmos atentos à próxima vaga. E vai ser preciso encontrar mecanismos que possam evitar ou mitigar o impacto nas comunidades e sociedades com menos nível de rendimento, empregabilidade e estrutura social.

Este fenómeno tende a criar um fosso ainda maior entre os que têm mais e os que estão abaixo do limiar de pobreza. O coronavírus pode criar novos pobres, pode empurrar famílias, regiões e países para uma situação muito pior do que a que existia antes – e esta já não era famosa.

O grande debate vai ser como solucionar as novas situações de injustiça social e pobreza emergente, sem que a receita do passado seja a solução para o presente e para o futuro.

Na altura em que escrevo estas linhas Portugal pode estar a iniciar uma segunda vaga. Não sabemos, não existe clareza a este nível. De resto há muito mais especulação, opinião, até “achismo” do que evidência sustentada em factos que possa trazer nitidez e claridade à dimensão do que estamos a viver. No mundo inteiro, diria.

Na empresa em que trabalho adotámos uma postura de responsabilidade e compromisso. Responsabilidade para com os trabalhadores, a sua saúde e a das suas famílias.

Reinventámos a forma de trabalhar, ajustámos processos e adotámos novas ferramentas de trabalho.

Continuámos ativos na nossa missão de melhorar e salvar vidas, apesar de um cenário adverso, através da disponibilização dos nossos medicamentos e vacinas.

Por fim, marcámos posição no combate à COVID-19 com anúncio de colaborações para o desenvolvimento de vacinas e antivirais para tratamento dos doentes.

É um orgulho poder fazer parte de uma organização que lidera, que está na vanguarda da ciência, que assume e reforça o seu compromisso.

Como cidadão não posso, contudo, confundir a parte com o todo. E sei que muito temos todos, enquanto sociedade, de fazer, unindo esforços e cerrando fileiras, para que um dia, não sabemos ainda quando, se é que isso voltará a ser possível, possamos andar na rua como antes o fazíamos, de forma segura, inclusiva, coesa, ética e com alegria.

Sim alegria. E esperança. E saúde. E bem-estar. Coisas simples, direitos que pensávamos ser inalienáveis e que o coronavírus ainda ameaça querer manter em confinamento.

É uma luta sem tréguas. Acredito que vamos vencer. Só não sei ainda a que preço.

Mas, juntos, seremos capazes de desatar os nós que este vírus soube dar às nossas vidas e ao mundo que, ainda há 6 meses atrás, todos nós conhecíamos e que, sendo imperfeito, era melhor do que aquele em que estamos forçados a (sobre)viver.

Lisboa, 29 de junho de 2020