CRÓNICA DE UM (DES)CONFINAMENTO

Crónica de um (des)confinamento
em 2020-06-18 Ano: 2020
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Autor(es)

Rogério Ribeiro

Investigador Biomédico, APDP; Prof. Auxiliar Convidado, Universidade de Aveiro



Quando aceitei o convite para escrever esta crónica, julguei que iria escrevê-la “de dentro” do confinamento que o SARS-CoV-2 suscitou. Em pouco mais de uma semana, e apesar da situação epidemiológica da Zona Metropolitana de Lisboa não estar propriamente famosa, noto à minha volta que a perceção comunitária da realidade parece ter mudado consideravelmente.

Quando o país começou a acordar para o facto da Biologia não respeitar barreiras alfandegárias (afinal, a China passou a estar aqui tão perto) ou convicções sem grande substância (afinal, os vírus não pedem licença para se ambientarem à propagação numa nova espécie), o primeiro impacto que senti foi a incerteza expressa pelos alunos da Universidade, muitos deles alojados longe dos respetivos núcleos familiares. Felizmente, a capacidade de decisão cautelosa e sólida da Universidade soube sobrepor-se à relativa hesitação de outras autoridades.

Instituído o afastamento, o desafio seguinte foi providenciar a esses alunos a continuidade possível nos seus estudos, e garantir que, em termos pedagógicos, as instituições de ensino o faziam de uma forma uniforme. Cedo ficou claro que ao sentido de urgência e de algum improviso inicial, não correspondia de todo um processo de “salve-se quem puder”. Os docentes e instituições apoiaram-se intensamente, e os alunos enfrentaram as dificuldades com estoicismo, aderindo em massa às aulas à distância e às nossas tentativas de garantir critérios na obtenção de elementos de avaliação. Claro que não constituiu surpresa que os alunos mais intervenientes correspondessem àqueles que já o faziam nas aulas presenciais; o que sugere que as dinâmicas de ensino foram preservadas no essencial durante este processo.

Em termos de investigação, o confinamento ditou uma paragem quase absoluta do trabalho de campo e de laboratório. A instituição onde desenvolvo trabalho de investigação é também uma unidade de Saúde dedicada ao cuidado de pessoas com diabetes, que nunca fechou as portas aos utentes, mas que assegurou a sua segurança, e a dos profissionais, reduzindo a atividade presencial aos contactos estritamente necessários. Para colmatar esse facto, rapidamente reorganizou a prestação de serviços, contactando exaustivamente os utentes, para realizar consultas por telefone ou simplesmente para avaliar as novas necessidades das pessoas com diabetes no seu meio social. Sabendo-se da estreita ligação entre diabetes e a gravidade da covid-19, não será de surpreender que esta fosse uma população particularmente insegura e aflita. A APDP criou igualmente uma linha de atendimento, gratuita e de âmbito nacional, para responder às dúvidas e solicitações de todas as pessoas com diabetes.

Pessoalmente, a suspensão das atividades de investigação não significou alívio da carga laboral, muito pelo contrário. A necessidade de adaptação a uma comunicação digital constante, a disponibilização de webinars e debates com as mais recentes informações, muitas vezes realizados em horário noturno, o desafio de gerir, criar e submeter projetos científicos multidisciplinares na impossibilidade das várias equipas se reunirem presencialmente, ainda para mais sendo que o principal concurso da Fundação para a Ciência e Tecnologia, que não era realizado há três anos (!), calhou precisamente no epicentro da epidemia, tudo isto garantiu uma atividade constante. Garantiu também um enorme cansaço, principalmente pelas longas sessões consecutivas de trabalho virtual, e pela necessidade de assegurar espaços em simultâneo para quem tem mais de um elemento da mesma família a trabalhar a partir de casa.

A adicionar a esta atividade frenética, o ambiente “surreal” da manutenção do confinamento. Uma ansiedade gerida no equilíbrio entre a dúvida interna e a situação retratada repetidamente pelos noticiários televisivos. A vantagem e desvantagem de poder estar afastado da “linha da frente”, frequentando o local de trabalho apenas uma ou duas vezes por semana, por escolha própria e bastante resguardado. Ao contrário da maioria das pessoas, o confinamento para mim aumentou à medida que começou a haver mais gente em movimento nas ruas, sendo expectável que esse processo voltasse a fazer aumentar o risco de propagação.  

A situação de pandemia e confinamento veio sublinhar a relevância da Saúde Digital, uma das áreas em que tenho participado em vários projetos de investigação e implementação nos últimos anos. Precisamente num deles, financiado pela Comissão Europeia, a realização do piloto em várias unidades de cuidados primários da Amadora foi apanhada pela situação de emergência. Foi interessante ver que alguns utentes e profissionais mantiveram a utilização dessa solução digital integrada para o apoio à gestão da diabetes, mesmo com o piloto oficialmente suspenso. O tempo dirá se a pandemia de Covid-19 será verdadeiramente um gatilho para a implementação generalizada destes sistemas, já que, no futuro tal como no passado, isso dependerá criticamente da sua utilização ser devidamente comparticipada pelos sistemas de saúde.

Também por isso, choca-me ouvir dizer que “o SNS descobriu dentro de si uma força que estava adormecida”. Há muito que me habituei a testemunhar o empenho e resiliência de muitos dos seus profissionais. É triste que pareça ter sido necessária uma epidemia para os seus responsáveis máximos “descobrirem a pólvora“!

De igual forma, tenho assistido à utilização frequente do argumento de falta ou presença de “evidência científica” para espaldar decisões políticas que por vezes pouco parecem ter a ver com essa evidência. Para além de opiniões modeladas por outras preocupações, como no caso da mensagem sobre a utilização de máscaras, que ainda atualmente parece estar “enrodilhada”, e que poderá explicar o modo mecânico e irrefletido como grande parte do desconfinamento está a ser realizado na comunidade, no que diz respeito à inconsistência da utilização dos meios de proteção individual. Ainda hoje assistia a um grupo de pessoas que conversava descontraidamente à porta de uma mercearia, em amena proximidade e de máscaras na mão, à espera de entrarem, um a um, colocando-as aí por obrigação. Afinal, como convencer alguém da sua importância, se antes se argumentou a sua irrelevância e até se difundiu que causavam “um sentimento de falsa segurança”?

Nestes meses, teremos sentido como nunca o peso dos dias. Mas temo que, como suspeitei logo no início da pandemia, voltaremos com celeridade ao “antigo normal”, e não a um “novo normal”. Cabe-nos, a cada um de nós, tirar da experiência radical dos últimos meses as lições possíveis.

Almada, 30 de Maio de 2020