O CONTRIBUTO DO FARMACÊUTICO COMUNITÁRIO, PARA QUE FIQUE TUDO BEM

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O CONTRIBUTO DO FARMACÊUTICO COMUNITÁRIO, PARA QUE FIQUE TUDO BEM
em 2020-06-16 Ano: 2020
Crónicas de uma pandemia_VF.png
Autor(es)

Ema Paulino

Farmacêutica comunitária

Membro do Comité Executivo da Federação Internacional Farmacêutica (FIP)


O mundo não conhecia uma pandemia desta magnitude desde 1918. E apesar de todos os desenvolvimentos positivos dos sistemas de saúde nas últimas décadas, esta crise global de saúde submeteu-os a um teste muito desafiante, mesmo nalgumas das nações mais ricas (e saudáveis) do mundo.

Tornou-se ainda mais óbvio o que significa um mundo sem vacinas em termos de carga global da doença, perda de vidas e impacto económico para todos os países. E vimos como as doenças não transmissíveis, como as doenças cardiovasculares, respiratórias, a diabetes ou o cancro, não representam apenas um enorme peso por si só, mas predispõem as pessoas que as têm às formas mais graves de outras doenças, como a gripe ou a COVID-19. Tudo isto irá pressionar os governos a repensarem os sistemas de saúde e a investigação científica e, esperemos, a reconhecerem e apoiarem de forma sustentável os profissionais e instituições de saúde.

Esta crise deixou claro que todos somos necessários quando se trata de tornar os sistemas de saúde eficientes e sustentáveis, e os farmacêuticos e as farmácias não são exceção. Têm um papel a desempenhar na saúde pública, na educação para a saúde e na prevenção da doença, na preparação e resposta de emergência, na garantia do acesso aos medicamentos e na sua utilização responsável, assim como na melhoria da sensibilização para a vacinação e cobertura vacinal.

Em todo o mundo, e apesar de terem sido decretados estados de emergência em muitos países que implicaram o encerramento da quase totalidade dos estabelecimentos de atendimento ao público, as farmácias permaneceram abertas para garantir o acesso aos medicamentos, dispositivos médicos e demais produtos de saúde, assim como os cuidados farmacêuticos necessários ao cidadão. Para além deste serviço vital, os farmacêuticos e restantes colaboradores das farmácias têm desempenhado um importante papel de saúde pública na informação e aconselhamento ao público sobre a COVID-19, os seus modos de transmissão e medidas preventivas.

As farmácias comunitárias têm também participado na avaliação e identificação de pessoas com maior risco de infeção ou apresentação de sintomas sugestivos de COVID-19, referenciando-os para eventual diagnóstico e acompanhamento. Em vários países, as farmácias intensificaram os serviços domiciliários a pessoas que se encontravam em situação de confinamento ou quarentena, foram autorizadas a efetuar renovação da terapêutica a pessoas com doença crónica, a procurar alternativas para medicamentos em escassez ou rotura no circuito, e a dispensar medicamentos que normalmente são dispensados pelos serviços farmacêuticos hospitalares.

Os farmacêuticos desenvolveram soluções que permitiram dar continuidade à relação de proximidade que estabeleceram com a população que servem, mesmo no contexto de afastamento social. Estas soluções passaram não só pela redefinição do circuito e dos procedimentos de dispensa, fazendo chegar o medicamento a quem mais dele precisa, mas, sobretudo, de otimizar o acompanhamento que o farmacêutico faz da efetividade e segurança das terapêuticas.

Ainda estamos a atravessar um momento de especial complexidade relacionado com a COVID-19, e é provável que nos vejamos nesta circunstância nos próximos meses. Enquanto indivíduos, enquanto sociedade em geral, mas também enquanto sector das farmácias comunitárias em particular, todos os dias somos confrontados com alterações ao nível legislativo e regulamentar, fruto da dinâmica pandémica, que por sua vez implicam alterações ao nível pessoal, logístico e organizacional. 

A Organização Mundial da Saúde alerta-nos para uma segunda vaga da pandemia, e apesar dos avanços científicos que vamos celebrando todos os dias, quer no campo de uma possível vacina, quer de terapêuticas específicas para a doença, ainda não existe uma panaceia concreta que nos dê a segurança necessária para baixarmos a guarda. Previsivelmente, a população em geral irá fazê-lo, tal como para todas as outras doenças que determinam a morbilidade e mortalidade em todo o mundo. E o próprio sistema de saúde terá de a contextualizar no léxico global dos problemas de saúde. Na vida para lá da COVID-19. E na doença, também.

Num estudo publicado na Acta Médica Portuguesa, a revista científica da Ordem dos Médicos, os autores concluíram que entre 1 de março e 22 de abril houve um excesso de mortalidade de 2400 a 4000 mortes, sobretudo associado a pessoas com idade superior a 65 anos, o que é 3 a 5 vezes superior ao explicado pelas mortes por COVID-19 reportadas oficialmente.

Também a Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP), num projeto denominado “Barómetro da Covid-19”, concluiu que foi registado um excesso de mortalidade na ordem dos 1255 óbitos na segunda quinzena de março e primeira quinzena de abril, em comparação com a tendência de anos anteriores. Tendo em conta que neste mesmo período se registaram 599 mortes relacionadas com a Covid-19, podemos deduzir que existe, neste excesso de mortalidade, uma percentagem significativa (51%) que não está diretamente ligado à doença. 

Contudo, não deixa de ser consequência do contexto pandémico que vivemos.

Com efeito, o artigo publicado na Acta Médica e os investigadores da ENSP propõem alguns motivos que, na sua globalidade, podem explicar este aumento. Aquele que parece assumir maior relevância é o de que muitas pessoas, com doenças agudas ou crónicas graves, possam não ter procurado o sistema de saúde por receio de serem contaminadas, ou não terem encontrado no mesmo as respostas necessárias à resolução dos seus problemas, por via da reorganização efetuada para responder à pandemia.

Para além deste aumento de mortalidade que se observou no curto prazo, temos também de ter em conta a possibilidade de uma outra vaga, mais tardia, de aumento de mortalidade e morbilidade associada à utilização intermitente dos serviços de saúde. Concretamente, no que se refere aos medicamentos, sabemos que há pessoas que não estão a aderir à sua terapêutica habitualmente administrada em Hospital de Dia. Se as pessoas estão a faltar aos seus tratamentos oncológicos, como estará a adesão à terapêutica na comunidade? E qual o impacto que esta terá nas complicações tardias relacionadas com o não controlo das patologias respetivas?

Perante estes desafios, o farmacêutico tem de responder com a responsabilidade de quem sabe que os efeitos desta pandemia se vão estender muito para lá das alterações comportamentais que terão de ser efetivadas até ao aparecimento de uma vacina.

Neste contexto de pressão continuada sobre o SNS, as farmácias continuarão a ser uma porta de entrada para o sistema de saúde e um recurso importante para o acompanhamento da população. O caminho que já vinha a ser feito no sentido da implementação de serviços que otimizem os ganhos em saúde terá de ser reforçado, mas também os farmacêuticos se têm de preparar para uma “nova normalidade”.

E paralelamente, temos de refletir sobre o que precisamos de fazer diferente, para estarmos melhor preparados para situações em que o habitual dia-a-dia, deixe de o ser.

Almada, 31 de maio de 2020