SEM DESCULPAS – CRÓNICA DE UMA PANDEMIA A TERMINAR?

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Sem desculpas – crónica de uma pandemia a terminar?
em 2020-06-09 Ano: 2020
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Autor(es)

Carina Dantas

Diretora de Inovação da Cáritas Diocesana de Coimbra


REFLEXÃO

“Um enorme desafio ético a ser enfrentado será a redefinição do equilíbrio entre ferramentas digitais e presença humana. Se isso já era de alguma forma estável na opinião pública, o período de emergência polarizou as opiniões mais uma vez.

Será necessária uma enorme sensibilidade e uma grande consciência social para evoluirmos no sentido certo e não perdermos o enfoque – todas as medidas políticas, económicas e sociais têm que ter como último objetivo o bem-estar das pessoas e a promoção do bem comum!”


CRÓNICA

Seria impossível refletir sobre os desafios sociais da pandemia de Covid-19, sem incluir os seus efeitos nas organizações do Terceiro Setor. 

As semanas pré-confinamento na Cáritas Diocesana de Coimbra foram vividas já na antecipação de um processo que talvez fosse longo e duro – como, de facto, foi.

Ainda antes de qualquer resolução nacional, a Cáritas optou por adiar o Peditório Público Nacional, já na senda das decisões preventivas e responsáveis que manteve por todo este período. E a reunião de consórcio de um projeto, que juntou parceiros de vários países europeus nos dias 10 a 12 de março, já se realizou fora das nossas instalações e longe dos nossos utentes, para minimizar qualquer risco de contágio.

Com a declaração do estado de emergência, a Cáritas de Coimbra teve o seu mais difícil período, ao encerrar os Centros de Dia, Creches e Jardins de Infância, Centros de Atividades de Tempos Livres, e a minimizar os serviços presenciais em muitas outras respostas, o que teve naturalmente um forte impacto nos milhares de pessoas que usufruem do nosso apoio e serviço um pouco por toda a Região.

A título de exemplo, o encerramento dos Centros de Dia levou a que mais de 200 pessoas idosas tenham ficado sem a possibilidade de usufruir desta resposta que frequentavam diariamente.

Destas, 140 não tinham retaguarda familiar próxima, pelo que a Cáritas providenciou um serviço alternativo de alimentação e higiene pessoal, assegurando assim também visitas regulares. À distância de uma chamada têm estado os colaboradores dos Centros de Dia, que se mantêm contactáveis e que vão efetuando contactos regulares com os seus utentes para saber se estes se encontram bem e com o máximo de conforto possível.

Por outro lado, as Estruturas Residenciais para Idosos continuaram a funcionar com cuidados redobrados. Sendo a idade um dos principais fatores de risco e o distanciamento social essencial, os utentes destas valências estiveram mais de um mês sem poderem receber visitas. Para colmatar esta distância, a Cáritas de Coimbra realocou equipamentos digitais para realizar “Visitas Virtuais” e manter assim a comunicação entre os utentes e as suas famílias.

A Cáritas de Coimbra não deixou de estar também atenta a famílias que se encontram em situação de vulnerabilidade económica e social, agravadas com a pandemia de COVID-19. Assim, através do seu Centro Comunitário de Inserção, lançou a campanha Somos Família, convocando a sociedade civil a “adotar” famílias que estão a passar por momentos difíceis e às quais estão a entregar um cabaz por mês, recheado com produtos essenciais. Esta iniciativa já permitiu apoiar 38 famílias, num total de 104 pessoas, sendo que destas 50 são crianças.

Uma outra campanha, a Máscara Solidária, permitiu angariar cerca de 5000€, através da produção, entrega e pagamento de 1640 máscaras sociais não cirúrgicas, que apoiaram famílias cuja situação económica e social foi agravada com a pandemia da COVID-19.

Para além do apoio social, a prevenção e a promoção comunitária não deixaram de se realizar e novas formas de interação têm sido exploradas, nomeadamente ao nível dos projetos de inovação.

Os webinar do Projeto Triplo D têm sido um grande sucesso nas redes sociais, contando já com mais de 1000 pessoas alcançadas nas 4 sessões realizados, sobre Direitos Humanos.

Outro exemplo foi a participação de pessoas 65+ das unidades residenciais e cuidadores na cocriação do projeto internacional Pharaon, co-financiado pelo Programa H2020.

A Cáritas de Coimbra sempre advogou que os utilizadores finais de qualquer ferramenta digital têm que ser envolvidos nos projetos desde a sua conceção, para que as tecnologias desenvolvidas não se mostrem mais tarde desfasadas das verdadeiras necessidades de quem realmente as vai utilizar. Com o formato de pequenas reuniões (focus group) os participantes de duas Estruturas Residenciais da Cáritas deram as suas opiniões sobre três tecnologias/serviços que fazem parte do projeto: a Incubadora Social, o Campus de Cuidadores e a app “Cidade e Natureza”. As sessões foram dinamizadas por colaboradoras dos dois equipamentos e acompanhadas pela equipa da Inovação do projeto através de videochamada. As respostas dos participantes foram verdadeiramente enriquecedoras e muito importantes para esta recolha inicial de requisitos.

Como todas as organizações, temos sido chamados a recriar-nos e acompanhar as necessidades emergentes e mantivemos o nosso melhor, com o trabalho de excelência dos mais de 1000 colaboradores que nunca “baixaram a guarda”!

Porém, estamos conscientes de que, para muitos, para além da doença, o impacto do estado de emergência e das medidas de confinamento foram verdadeiramente devastadores. E que este será um desafio ainda maior do que aquele que enfrentámos nos últimos meses.

Estas consequências de longo prazo, são ainda mais graves do que as presentes e têm uma perspetiva muito ampla. 

Nos últimos anos havia já um discurso sólido e vontade política, transversal à maioria dos países europeus, sobre a necessidade de investir na prevenção, na integração dos cuidados de saúde e sociais, na promoção de soluções digitais e centradas nas pessoas - em resumo, consensual quanto à necessidade de avançar e investir no bem-estar e na qualidade de vida.

Porém, a crise económica pós-pandemia e as mudanças sociais que estão a emergir deste período irão facilmente criar espaço para retirar estas prioridades da agenda política e dos planos de financiamento e, a menos que sejam tomadas medidas, poderá implicar um retrocesso de mais de 5 anos na implementação da inovação e na qualidade de vida dos cidadãos.

Durante este período de pandemia, muitos serviços tradicionais tiveram que ser fechados; os hospitais estavam lotados e as pessoas tinham medo de ir presencialmente ao médico de família; a solidão e a falta de apoio da família, devido a restrições de viagens, foram exacerbadas e os serviços digitais, se implementados e acessíveis corretamente, podem ser uma ferramenta útil para enfrentar muitos destes desafios.

No entanto, nunca estivemos tão cientes da necessidade do contacto humano e tão carentes de toque e proximidade.

Um enorme desafio ético a ser enfrentado será a redefinição do equilíbrio entre ferramentas digitais e presença humana. Se isso já era de alguma forma estável na opinião pública, o período de emergência polarizou as opiniões mais uma vez.

Será necessária uma enorme sensibilidade e uma grande consciência social para evoluirmos no sentido certo e não perdermos o enfoque – todas as medidas políticas, económicas e sociais têm que ter como último objetivo o bem-estar das pessoas e a promoção do bem comum!

Coimbra, 5 de junho de 2020