INESPERADO

Inesperado
em 2020-06-04 Ano: 2020
Crónicas de uma pandemia.png
Autor(es)

Bernardo Gomes

Médico de Saúde Pública





Cada um de nós vive na sua própria narrativa, dos significados que atribui ao seu quotidiano, ao seu passado e ao seu desígnio pessoal. A envolvência coletiva e a forma como nos relacionamos, nos mais diversos níveis, é também determinante fulcral do nosso bem-estar enquanto indivíduos.

Independentemente de crenças, ideologias e fronteiras, os microrganismos que partilham connosco a existência neste planeta seguem o seu caminho. A Organização Mundial de Saúde tinha feito um aviso atempado de uma Doença X, da ameaça desconhecida pandémica que poderia surpreender o mundo, já em 2018. Se for feita uma pesquisa breve na internet, rapidamente chegamos também aos avisos específicos sobre a existência de vários coronavírus existentes em morcegos e da investigação/monitorização apertada que era considerada necessária pelos especialistas.

Nada disto era verdadeiramente inesperado.

Tínhamos um mundo extremamente interligado, com turismo intenso, com recordes crescentes de viagens aéreas e também de convívio difícil com habitats de outras espécies. Impõe-se, cada vez mais a visão “One Health”: saúde, ambiente e veterinária de mãos dadas na vigilância epidemiológica e na ação no terreno. Ligando, também, inevitavelmente aos chamados objetivos de desenvolvimento sustentável.

Os elos mais fracos quebram durante as crises. Os sistemas mais rígidos acusam também os seus pontos de falta de celeridade e flexibilidade. Está na altura de dotar os Serviços de Saúde Pública de uma missão mais clara e coincidente com as competências adquiridas em formação, dirigidas ao exercício da promoção da saúde, da prevenção da doença e proteção da saúde, em linha também aquilo que são as operações essenciais em Saúde Pública.

Adicionalmente, sou testemunha de dificuldades sentidas por burocracia excessiva, falta de modernização administrativa e informática assim com um modelo enxuto de comunicação entre serviços do Estado. É necessária cultura de maior autonomia e responsabilização para que os melhores decidam arriscar. Caso contrário, estamos sempre dependentes de um sistema com múltiplas responsabilidades, mas ausência de responsabilização. Este sistema é sempre vulnerável em tempos de crise.

Nada disto era verdadeiramente inesperado.

Contudo, tenho a dizer que estou satisfeito com a forma como a sociedade portuguesa e os profissionais de saúde responderam a este enorme desafio. Podíamos ter feito melhor na comunicação, para o público e entre os profissionais. Podíamos ter feito melhor com Serviços de Saúde Pública libertos de burocracias e tarefas como as Juntas Médicas de Avaliação de Incapacidade há mais tempo. Podíamos ter feito melhor com maior sentido de responsabilidade de figuras que compararam o SARS-CoV-2 a uma “gripe”, sendo contribuintes líquidos de uma mensagem errada e que nos podia ter custado muito mais no arranque das medidas necessárias para achatamento da curva. Podíamos ter ouvido, mais cedo, quem anda a chamar a atenção para todos estes problemas.
Afinal, nada disto era verdadeiramente inesperado.

Podíamos ter feito melhor, mas não seguimos o trajeto temido de Espanha ou Itália. Vi, sei de profissionais de saúde que deram tudo o que tinham e não tinham para que assim não fosse. Chorámos nós na antecipação do que podia ser para que outros não chorassem mediante a concretização dos nossos medos. A resposta política foi globalmente positiva, sobretudo na questão da antecipação de cenários e tomada de medidas proporcionais.

Existirão estórias múltiplas para contar, passando pelo espírito heroico de algumas unidades de saúde pública e dos seus profissionais, dos meus colegas clínicos que trabalharam horas a fio sem ver as famílias, mantidas à distância por segurança até ao papel fulcral de gestores regionais, locais, serviços sociais, proteção civil e algumas autarquias. Haverá também um momento para as contar. Guardarei também na memória o espírito de sacrifício de internos de formação geral e de formação específica que entraram pelas noites e fins de semana dentro para nos ajudar a debelar surtos e a seguir contactos.

Também não era nada verdadeiramente inesperado.

O que espero, com toda a franqueza, é que sejamos capazes de olhar para trás e avaliar friamente o que fizemos melhor e o que fizemos menos bem para conseguirmos melhorar. Precisamos definitivamente dessa cultura de avaliação para conseguir crescer e mudar. Estou certo que, neste momento, mais do que louvores ou palminhas nas costas, o que muitos profissionais verdadeiramente esperam é uma melhoria das suas condições de trabalho, serviços mais ágeis, adaptações legislativas e tecnológicas para dar resposta às necessidades das populações. Serão estas as recompensas que poderemos dar aos profissionais: perenes e tendo em vista ganhos de saúde para as populações.

Espero que tenha ficado demonstrado que não é por questões corporativas que é realmente necessário investimento e uma visão estratégica para os Serviços de Saúde Pública. Está em jogo o futuro dos nossos filhos e a capacidade de respondermos ainda melhor aos próximos capítulos deste desafio e de outros que ainda desconhecemos.

Podemos não saber o que esperar em concreto, mas não podemos dizer que será realmente inesperado.

Com a devida dedicatória aos internos de Formação Específica em Saúde Pública, aos quais espero que o país reconheça o esforço com uma melhoria do seu horizonte.


Porto, 26 de maio de 2020