AMBIVALÊNCIA EMOCIONAL DE UMA PANDEMIA

Ambivalência emocional de uma pandemia
em 2020-05-28 Ano: 2020
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Autor(es)

Sónia Pinote Bernardes

Especialista em Psicologia Clínica e do Trabalho

Saúde Ocupacional do Centro Hospitalar Universitário Lisboa Central, EPE

Responsável pelo apoio aos profissionais de saúde na equipa de apoio emocional COVID-19 do CHULC


Tinha chegado 2020, um ano “capicua”, novas expetativas, novos planos pessoais e profissionais. O conceito no hospital - INOVAR no cuidar, incentivava na minha função a repensar novas abordagens ao profissional de saúde. 

Seria desafiante implementar ideias criativas para combater o cansaço, o stress, a desmotivação e desmoralização que os profissionais sentiam e expressavam nas minhas consultas. Por outro lado, numa fase emergente de projetos como consequência da violência que alguns relatavam e que era possível ser analisado na nossa plataforma interna.

Nos media surgiam diariamente notícias de Burnout e violência aos profissionais. Tinha acabado de sair um artigo científico, numa revista médica, onde colaborei, sobre a violência e estratégias necessárias para o serviço de urgência de um dos nossos hospitais. 

Deslocava-me a cada um dos polos do Centro hospitalar Lisboa Central, na minha rotina laboral, sendo eu a única psicóloga do serviço de saúde ocupacional.

Dava consultas presenciais nos seis polos, aos cerca de oito mil profissionais, nas várias categorias que precisassem e para que beneficiassem do necessário apoio psicológico.

A exemplo dos anos anteriores, só em 2019 assisti a cerca de 150 novos casos e a agenda de 2020 já estava a ser preenchida para os próximos meses. 

Tendo como exemplo desses casos, uma enfermeira desmotivada com excesso de trabalho consequência de escalas complexas de serem geridas; uma outra com dificuldade em gerir faltas de respeito por parte de familiares; um assistente operacional com problemas pessoais e conflitos com a sua chefia; uma médica com ataques de pânico após ter sido agredida por um doente; um enfermeiro que após sofrer um AVC, regressava ao trabalho; uma administrativa com perturbação psiquiátrica sem o indispensável acompanhamento regular; um técnico de diagnóstico com conflitos graves com colegas; uma administrativa que descobriu uma doença oncológica; um profissional com consumos de álcool; uma enfermeira com dificuldades em adaptar-se ao seu posto de trabalho entre outros tantos casos, com diferentes motivos, diversas intervenções e encaminhamentos.

Para além das consultas, a minha função também passava por dar sessões de formação nos serviços, sessões onde se explorava os temas atuais do Burnout, dos fatores de riscos psicossociais, da gestão de conflitos, da motivação, da adaptação ao trabalho noturno. Recordo a última sessão, no serviço de anestesia, onde tão calorosamente fui recebida por anestesistas e onde abordámos o tema da motivação com esperança de encontrar uma solução para os problemas que sentiam. 

Também tinha estado a trabalhar com o serviço de medicina, onde as queixas eram, sobretudo, acerca do enorme desgaste físico e mental, e o receio de alguns médicos de não terem tempo para partilhar as suas práticas e de conversar sobre as suas dúvidas e angústias. 

Outra atividade que estava a desenvolver era a de um projeto piloto que consistia em realizar sessões de relaxamento semanal numa equipa do serviço de hematologia, onde a patologia tratada é de uma enorme complexidade psicológica, antes de começarem os seus turnos, duas vezes por semana, durante 15 minutos reuníamos e preparávamos o dia, tomando consciência do estado físico e mental do nosso corpo.

Em janeiro tinha agendado reuniões, a realizar nos meses seguintes, na implementação de projetos na vertente da humanização hospitalar e esperava ansiosamente por eventos os quais tinha sido convidada para partilhar o trabalho desenvolvido junto dos nossos profissionais.

Ao mesmo tempo na comunicação social íamos ouvindo a existência de um novo vírus, de algo que estava a perturbar outros países, no entanto o pensamento da grande maioria ainda estava distante de prever que fosse algo tão próximo e real e negávamos a possibilidade que chegasse até nós. Mais tarde percebi que fora da minha “quinta”, já muitos especialistas, como os nossos médicos infeciologistas, já se estavam a informar e a preparar-se para o que poderia estar em vias de cá chegar.

Muitos de nós continuamos nas nossas vidas, os nossos planos, mantendo viagens, rotinas, vivendo os nossos problemas diários, mas, no entanto, numa só semana tudo viria a mudar. Começaram a chegar e-mails e chamadas telefónicas a adiar reuniões, formações, eventos, congressos, palestras. As consultas estavam a ser canceladas e por ordem do nosso conselho passariam todas a ser por atendimento telefónico. Nem tivemos tempo de questionar, de ponderar, de testar, estava tudo a acontecer e foi muito rápido até nos apercebemos que o inimigo estava a chegar e, embora ninguém o conseguisse ver e perceber antecipávamos cenários de terror.

Como psicóloga e como cidadã tive alguma dificuldade para em tão pouco tempo processar todas as informações que fui recolhendo e as emoções sentidas. Continuo a precisar de tempo para as poder analisar devidamente e fazer face a toda a informação que vai surgindo a um ritmo frenético. Faço um esforço diário para reconhecer quem sou e o que estou a fazer para contribuir para o bem-estar daqueles que são o objeto do meu trabalho. Não tenho naturalmente tempo para pensar, refletir, é mais tempo de agir.

Somos profissionais de saúde e a nossa missão é a de cuidar. Foi, e é, a frase que agora mais oiço ao telefone e que sustenta as crenças que combatem o medo do desconhecido, o medo de ser infetado e de infetar. Pensamentos ruminantes que se transformam em emoções ambivalentes. 

Perante o cenário que vivia, em finais de fevereiro comecei a perceber a enorme agitação no nosso serviço. As incontabilizáveis chamadas telefónicas que estávamos a receber, as inúmeras mensagens nas redes sociais que íamos recebendo eram ao minuto, por vezes quase ao segundo. As dúvidas, os receios e as lamentações eram estranhamente partilhados entre os profissionais, pessoas que deveriam ter essa superior capacidade de auto-controlo e auto-eficácia. Mas a quantidade de informação que tínhamos era completamente insuportável.

Muitos procuravam obter respostas sobre procedimentos, queriam indicações, orientações, outros telefonavam para procurarem a melhor forma de se protegerem ou de conseguirem justificar o seu isolamento por pertencerem a um grupo de risco. Fomos durante duas semanas uma verdadeira central telefónica onde o profissional queria obter segurança, orientação e a confiança necessária para encarar estes novos tempos. Um serviço que até a data muitos desvalorizavam, e que de certa forma questionavam a sua existência.

Tínhamos de manter o zelo, o cuidar do doente, que agora também poderíamos ser nós um deles. Agora de uma maneira diferente... Como seria? O que fazer? Como fazer? Surgia o sentimento de ambivalência no cuidar. Nesse momento, todos nós sentíamos o medo do desconhecido e o pânico com o que observávamos diariamente nos outros países, começámos a perceber que somos pessoas, atrás das batas, com receios que a doença também nos pudesse atingir.

Foi nesta altura que se pensou em criar uma equipa de apoio emocional, uma equipa onde se desse resposta a reações emocionais difíceis de gerir e que se prevenissem situações mais complexas de se resolver mais tarde. Muito rapidamente surgiu o protocolo, numa parceria com o gabinete de segurança do doente, com a unidade de psicologia, com a psiquiatria, com o apoio espiritual e o serviço social. Sob este espectro, foram solicitados telefones e correio eletrónico surgindo a linha de apoio emocional ao COVID-19. Estavam, entretanto, rapidamente criadas as condições solicitadas e lançou-se a 27 de março, através de circular interna, ao qual prontamente o Conselho deu o seu aval. O profissional de saúde tinha um meio de auxílio nos momentos mais difíceis.

Era altura de ir para casa e abraçar com força esta nova jornada de atendimento telefónico, tinha a expectativa que o telefone não parasse de tocar tendo em conta tudo o que se ouvia e se via nos media. Passou um dia, passaram dois e o telefone não tocava… Ao terceiro dia uma chamada a agradecer a criação da linha. Ao quarto dia um silêncio inquietante… O mesmo silêncio que agora se começava a sentir nos hospitais. Estava, claramente, tudo mais tranquilo e sereno. As pessoas tinham ido para casa, as visitas eram canceladas, os serviços reorganizados, e as urgências estavam controladas. Lá fora o pânico continuava a imperar, as dúvidas e as incertezas eram reais, assim como as outras doenças. O que estava a acontecer?

Os psicólogos são atentos seguidores dos processos, da forma como pensamos e nos comportamos, ou seja, analisamos e estamos atentos ao que nos rodeia como forma de adaptação e resiliência ao nosso eu e à nossa própria circunstância. 

Como a linha não era utilizada, resolvi eu começar a contactar os profissionais. Entender como estavam, o que sentiam e do que precisavam. Estavam eficientemente a organizar-se, muitos partilhavam o lado positivo da chegada deste preocupante vírus, que era o facto de sentirem os colegas mais colaborantes, mais solidários e a partilharem as experiências de cada um e a ajudarem-se no combate ao mesmo. As mensagens que o Conselho passava nas circulares de orientação e valorização estavam a servir de âncora. Muitos já estavam a sentir a anestesia das beta-endofinas contra a dor, o desconforto, medo e estavam focados acima de tudo o resto, na missão de cuidar.

Começaram a surgir os primeiros profissionais infetados e de modo eficaz os meus colegas do serviço de saúde ocupacional tomaram conta do assunto e, de uma forma nunca testada, começaram a implementar estratégias de controlo desta infeção. Nem sempre fácil pelas dúvidas e incertezas existentes face aos procedimentos, mas, de forma competente e arrojada fizemo-lo.  

O telefone da linha de apoio continuava em silêncio e eu enquanto psicóloga da saúde ocupacional mantinha o acompanhamento prévios pelo telefone particular. Alguns, os casos mais complexos estavam em casa por recomendação médica e/ou indicação da chefia. Outros encontravam-se no terreno e até bastante resilientes. Esses, talvez pelo decréscimo de volume de trabalho, ou pela crescente valorização do profissional de saúde sentido internamente e através das redes sociais, estavam tranquilos e a desempenhar o seu trabalho. As consultas via telefone e por videochamada eram bem recolhidas como suporte, conforto e mantinham o efeito terapêutico de um acompanhamento psicológico no âmbito do trabalho.

No fim do mês de março já tínhamos uma lista de cerca de 30 profissionais infetados e decidimos que seria importante contactar estas pessoas, que pela sua natureza e desconhecida experiência, seria importante esta proximidade. De forma a entender as suas necessidades e avaliar estados emocionais.

Assim o fiz e o retorno nesta ação foi de enorme gratidão por parte de todos aqueles que eram contactados, médicos, enfermeiros, assistentes operacionais. A maioria estavam assintomáticos, teriam tido sintomas simples, expressavam tranquilidade, mas ansiedade por regressar ao terreno. 

Aquilo que diziam ser mais difícil era o isolamento e o sentimento de inutilidade.

Este apoio manteve-se, até aos novos testes, o percurso foi longo, a maioria teve resultado positivo nos segundos e terceiros testes, alguns desmotivaram e começavam a sentir a inércia corporal.

Foi altura de pedir ajuda às nossas fisioterapeutas, as quais se prontificaram em criar um grupo nas redes sociais onde partilhavam em direto, sessões de yoga, pilates e dança. 

Grupo e estratégia que ainda se mantém.

Para manter o foco e o contacto com as pessoas em isolamento gravei uma sessão de relaxamento e meditação, onde foi divulgada através das redes sociais ao qual teve grande adesão e aceitação.

Num segundo momento foram contatei alguns colegas da linha da frente. Recordo uma chamada a uma enfermeira chefe onde a intenção era de um contacto curto e simples e conversámos quase uma hora. Ouvi os seus desafios e conquistas, e humildemente os medos e receios, tendo no fim sido devolvida a gratidão do contacto de ter sido ouvida e validada na sua missão.

Fui percebendo que, com estas chamadas, algumas das crenças dos profissionais de saúde estavam na base do silencio da linha de apoio, crenças como: “não tenho tempo”, “estou ocupado”, “consigo suportar isto sozinho sem ajuda profissional”, ou que “os sintomas que se ia sentindo de cansaço ainda eram suportáveis”. 

Constatei que alguns estavam a utilizar recursos fora da instituição, através de outras linhas de apoio, ou das suas redes sociais, salvaguardando outra crença, o medo se exporem e/ou de saberem da sua fragilidade humana.

Continuamos a passar por novas fases, todas muito céleres, no entanto, volvidos meses algo permaneceu, a necessidade de reorganização, de boa gestão hospitalar, uma gestão justa, equilibrada e orientada.

Comprovo com a minha experiência, nesta oportunidade ambivalente, infelizmente de crise, a importância da gestão dos recursos humanos como maior prioridade para se evitar problemas no futuro. A adaptação do profissional a um posto de trabalho a sua mobilidade e a forma como labora deverão ser aspetos de enorme importância nos tempos que se avizinham. 

Neste sentido, pode ajudar manter algumas das medidas (regras e limites) que deveriam ser cumpridas e adaptados à nova realidade. Medidas de higiene e limites quanto ao número de visitas nos hospitais. Veja-se como uma boa oportunidade de organizar boas práticas individuais e organizacionais, medidas de saúde publica e de civismo.

Por outro lado, reforço a importância de continuar a valorizar o profissional de saúde, esta atitude deve prevalecer em cada um de nós e na sociedade, no sentido do bom senso e serenidade nos cuidados.

É essencial nesta fase, passado dois meses que se olhe, que se reflita, que se pense, avalie e que nos preparemos para uma nova realidade.

Em psicologia acreditamos que não há erros, o único erro é a persistência do erro. E são estas fases, de perturbação que podem ser cruciais para sermos melhores, mais resilientes.

Cada um na sua função. Na minha, como psicóloga analisar estas novas variáveis comportamentais, que nos podem dar a possibilidade de solidificar aprendizagens.

Para mim estes últimos tempos foram de enorme crescimento pessoal e profissional, o que fiz, os contactos, as horas ao telefone, as parcerias e as emoções foram sentidas ao momento e agora precisam de ser integradas e ponderadas.

Por todo o exposto, desafio os profissionais de saúde e as administrações a refletirem na sua forma de estar individual e em equipa, repensarem o significado que dão ao seu trabalho; quais as prioridades, qual a forma de estar consigo e com o outro. 

Como cada um desempenha a sua função, como colaboram, como manter a esperança, aprender a ser positivos, a sentirem-se motivados, a serem criativos, a ponderarem expectativas, a trabalhar níveis de confiança entre pares, de respeito, de aceitarem a vulnerabilidade que nos foi imposta e torná-la em algo construtivo.

Ou seja, uma mudança de atitude sólida para que o bem-estar nos cuidados de saúde se propague e contrua uma mentalidade nas sociedades capazes de confiar em quem cuida.

Lisboa, 2 de maio de 2020